Monstros
Apesar de provavelmente já esquecidos, na infância todos tivemos os nossos monstros - fosse dentro do roupeiro, debaixo da cama, ou sempre que se apagava a luz, eles estavam lá - para nós era algo tão real como se pudesse ser palpável. Depois crescemos... e esquecemos (se bem que continuo a não gostar da escuridão). Crescemos, e continuamos a ter medo - de coisas bem diferentes, é claro, no entanto o medo sempre presente, mascarado pelas preocupações, pelo receio, pelas dificuldades que todos somos obrigados a confrontar ao longo da vida. O que me preocupa verdadeiramente, e digo verdadeiramente, são esses monstros que saem agora de debaixo das camas, saltam para a televisão e mostram ao mundo e a quem quer ver que existem, que existem mesmo, que sempre existiram. Disso sim, é preciso ter medo, muito medo.
Afinal o lobo mau existe, o papão também e todos os outros personagens sombrios dos contos infantis - só que estes, estes, não vestem pele de cordeiro, envergam sim a pele dos que supostamente deveriam acarinhar, amar, cuidar. Ora se aqueles em quem recai a obrigação mais obrigatória de proteger se revelam os perpetuadores desses abusos - o que fazer? Que solução possível se poderá encontrar? Quem irá cuidar dessas crianças, das nossas crianças, de todas as crianças? Nós. Cada um de nós. Eu e tu. Sei que somos cobardes ou então esquecemos a valentia por nos terem ensinado que essa era a qualidade dos reis e seus exércitos - mas temos de, pelo menos tentar estar mais alerta, acordar desse ritmo mórbido que permitimos que os tempos nos impusessem e olhar com olhos de ver para aquilo que nos rodeia, para aqueles que cruzam as nossas vidas e, mesmo assim acabam por tomar outros rumos, para aqueles que se cruzam com o nosso caminho e acabam por se juntar a nós. Desde o momento em que a existência de outro ser roça, mesmo que levemente, a nossa vida, ficamos sujeitos a uma obrigação - passam a preencher um pedacinho, mesmo que pequenino, da nossa vida - e tal como devemos prezar a nossa própria vida, devemos, pelo menos tentar cuidar desses que acabam, ao fim e ao cabo, por se tornar importantes para nós, por fazer parte de nós. Porque a minha vida é feita também da vida dos outros - a sua alegria inflama a minha vida, mas a sua queda no poço da escuridão... essa ensombra os meus dias e as minhas noites.
Conheço uma cave dessas... bem aqui ao lado, bem perto de mim e bem perto do meu coração - mas esta, esta, ao contrário da austríaca, não tem paredes... não tem paredes, e no entanto, ninguém conseguiu ver. Eu não consegui ver. E não me perdoo.