Cartas à Mil Vezes Mais #4
Minha querida MVM,
Está a chover. Não é que a chuva me incomode; adoro dias de chuva que convidam a um refúgio naquele café da esquina ao final da tarde e me deixam apreciar o bulício dos pedidos para o lanche, cá dentro; as pessoas que fogem da chuva, correm para o autocarro, seguem para casa, lá fora. Gosto da sensação de aconchego que as vidraças embaciadas nos transmitem. Detectam o calor humano. E há dias como o de hoje em que aprecio verdadeiramente o caminho para casa: de botas calçadas sigo rua abaixo de mão dada com a sensação de um dia completo nas costas e a vontade de chegar a casa sem pressas.
Adoro dias como este, em que me lembro das pessoas, em que reservo uns momentos do dia para pensar nelas. Foi por isso que hoje me sentei à secretária, peguei numa caneta, no papel de carta, e escrevi pausadamente como se esperasse uma resposta imediata a cada frase que depositasse no papel.
Sentei-me e escrevi. Escrevi sentimentos, lembranças que são sentimentos, memórias, recordações. Já viste como tudo são sentimentos? Escrevi sobre coisas pequenas, sem tamanho até. Escrevi sobre coisas grandes, tão grandes que nem cabiam na folha. Demorei o meu tempo. Gosto de desenhar cada palavra, sabias? Dá-me tempo de a absorver. O que pode parecer estranho, confesso. Se ela vem de dentro, porque a quero eu reabsorver?
Sinto-me feliz. Ao ver que os bons sentimentos permanecem sempre dentro de nós. Que crescem connosco. Amadurecem ao mesmo tempo (no nosso tempo) porque os carregamos connosco durante todo o percurso. E depois transformam-se. Como as crisálidas.
Temos de marcar um lanche para o final de uma destas tardes. Pode ser cá em casa. Poderia ser no mesmo cafezinho das vidraças embaciadas. Mas depois terás de fazer comigo o percurso até casa. Quero que conheças o meu caminho e deixes os teus passos gravados nas pedras da calçada só para elas também guardarem a tua memória.
Um abraço forte e um beijo de faces rosadas pelo frio do Norte.
Blue