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Blue 258

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VITRAL

08
Mai20

Sou feita de milhões de pedacinhos. Caminho nas ruas, cruzo-me com as outras pessoas, páro para conversar com quem conheço e ninguém percebe. Sou um vitral. Milhões de pedacinhos colados, perfeitamente encaixados no lugar, sem falhas, sem excesso ou falta de cola. Milhões de pedacinhos colados de volta ao seu lugar por mim. Afinal, só eu os poderia colar.

Há momentos em que dou por mim a parar. Fico muito quieta. E é aí que consigo ver alguns dos pedacinhos a separarem-se do vitral. Parecem voar em câmara lenta, como se pairassem a escassos centímetros de mim. Quero mover a mão, apanha-los no ar, coloca-los de volta no seu lugar mas não me consigo mover. O meu corpo não obedece, os músculos não reagem, sinto-me completamente paralisada. 

Não, não, não. Não posso perder estes pedacinhos! Fazem parte de mim. Eu sou cada um destes pedacinhos. Mesmo que colados ao longo dos anos. Mesmo que tenha deixado alguns pelo caminho, fui aprendendo que faz parte dar pedacinhos meus àqueles que cruzam a minha vida - que escolho dar e que dou mesmo sem escolher; fui aprendendo a juntar os pedacinhos novos que por vezes me dão - muitas vezes sem saberem também mas outras porque escolhem fazer a diferença - e ajudam a fazer de mim a pessoa que sou hoje. Estes pedacinhos são meus! Têm uma história. A minha história! Não me posso permitir perder mais. Mas o corpo não me obedece. Sou um vitral prestes a estilhaçar-se no chão frio de pedra.

E é aí que me lembro: respira. E eu inspiro. E os pedacinhos iniciam o percurso de volta ao meu corpo. Expiro. E os pedacinhos que há momentos pairavam no ar, voltam a encaixar-se no seu devido lugar. Respiro. E sou um todo de novo. Milhões de pedacinhos colados. Sou um vitral.