Da tentação
Imaginemos a tentação como um bolo tipo o Floresta Negra, com recheio de brigadeiro. Um bolo fresco, acabadinho de fazer, tão fofo que até o vemos descair dos lados de tão fofo que é. Cobertura perfeita, lisa, lisinha, contornos suaves e a raiar o perfeito. E aquele brilho, aquele brilho de um chocolate perfeito, perfeito. Babamos a olhar para ele, lambemos os lábios, chegamos ao ponto de os morder. Aos lábios. E de querer morder... o bolo. O bolo? Pois, o floresta negra.
Suponhamos que seguimos um certo regime há já alguns anos. Suponhamos. No momento em que os nossos olhos se deparam com este exemplo perfeito da tentação, vergamos. Mulher que é mulher verga perante tal espécime culinário. Verga, verga. Acreditem que verga. Perante tal visão, o córtex cerebral comunica com todos os emissores e receptores sensitivos do corpo. Comunica, comunica. Acreditem. E babamos, tal qual cão (cadela) de Pavlov. Babamos.
A partir deste momento, do das apresentações feitas - olá, Raquel, este é o floresta negra. Floresta negra, esta é a Raquel - a lei da acção-reacção exibe a sua supremacia: pá, quero deitar-te o dente. Gaja, come-me todo, diz o floresta negra. E, inevitavelmente, perante o peso das leis do universo, um processo começa a ser desenvolvido: eu quero. Oh, mas não posso. Oh, mas eu quero, eu quero. Só não devo. Não devo, mas posso. E quero, quero tanto. E o floresta negra: come-me, come-me. Um bocado limitado, mas o que se pode esperar de algo tão fresco, tão fofo, acabadinho de sair do forno? Pois, lembrem-se disso.
Então, começamos a pensar - a fazer uso da massa cinzenta - quando lá nos conseguimos concentrar e esquecer, ou obliterar por uns momentos a massa fofa fofa fofa - ênfase no fofo - do floresta negra com recheio de brigadeiro. E pensamos: tanto tempo, tanto sacrifício investidos neste regime nazista, e vou eu agora deitar tudo a perder por causa deste floresta negra? Fresco, fofo, tão fofo, tão lindo, viçoso, polvilhado com pepitas perfeitas de chocolate, ai, ai, ai... não, não posso, eu não posso. Não posso. Oh, e se for só uma dentadinha? Oh, só uma, uma só, apenas uma. Só uma dentadinha. E servimo-nos de uma fatia. Fininha. Fininha, que é por causa das coisas. Das calorias, isso, das calorias. E logo na primeira dentada, saboreamos o aveludado do floresta negra: entranha-se na língua, infiltra-se nas papilas gustativas, e percebemos, percebemos que o sabor corresponde ao aspecto. Não fica aquém das expectativas, não... e dá-nos cabo da cabeça.
Quando lhe damos a primeira dentada, depressa acabamos aquela fatia, fininha, fininha. Queremos mais. Só mais outra fatia, outra, só mais uma, mais... grossinha. E espetamos o garfo de sobremesa. Qual quê? Agarramos a fatia com a mão, e metemo-la à boca, gulosas, perdidas, deliciadas com o floresta negra. De prato na mão, fatia a aproximar-se das migalhas, pensamos agora: perdida por cem, perdida por mil. Mandei a dieta para Marte, pois então, se é para a desgraça, é para a desgraça. É então que cedemos por completo à tentação, oh doce tentação... do floresta negra. É. Um dia não são dias - grande máxima, e isto das máximas, tem muito que se lhe diga - defendemos nós. E a vida são dois dias e não sei quê - mais uma máxima. E deitamos a mão, o dente, a boca toda àquele pedaço de mau caminho. Malucas, desvairadas, cegas pelo desejo. Oh, carne fraca!
Comemos. Pois comemos. Só que, quando vamos a ver, afinal a massa não está no ponto, não, precisava de mais uns minutinhos no forno. Quiçá, precisava de uma batedeira mais potente. Ou de se terem envolvido melhor os ovos na massa. Quiçá. E damos por nós a pensar: porra, tão bom aspecto, mas tão bom aspecto, quase fui às nuvens com o primeiro contacto, com a primeira lambidela do recheio, com a primeira dentada, e agora, agora, é isto? E depois, o arrependimento: porra, estraguei a minha dieta... por isto? Porra. Oh que porra. Mas grande, grande porra. Uma grande porra, é o que é. E lá vamos nós para casa, acompanhadas pelo desalento de uma noite de tentação.
Calculamos as calorias, fazemos uma estimativa dos danos, planeamos restrições futuras e deduzimos que afinal, afinal, aquela velha máxima que diz que os olhos também comem, se devia ficar por isso mesmo: pelos olhos. E quando se fala dos olhos, são os olhos mesmo, e ver, vê-se é com os olhos - outra grande máxima - não se vê com a mão... ou com a boca. Ou por aí fora.