Eu já vos tenho dito que o coração é parvo. E é. Decerto que por esta altura, já muitos concordam comigo. E o coração, para além de parvo, parece muitas vezes ser acometido de uma verborreia incontrolável. É que fala, fala, fala e não há modo de se calar. E se, quando começa a falar, nem lhe respondemos - que é logo uma tentativa de lhe cortar as bases - ele persiste, insensível aos nossos esforços, e debita incansável o que lhe vai na alma. E nada o parece deter. Nada.
A situação pode tornar-se caricata se, e quando, nos encontramos num local público acompanhados. Tentamos, logo à partida, não dar bandeira. O que não é nada fácil. E é ver-nos ali, compenetrados, aparentemente atentos, quando cá por dentro, se desenrola a palestra mais dinâmica a que eu alguma vez assisti.
E o coração gosta de palestras. Oh se gosta. E de tempos a tempos, ostenta descarado as suas qualidades de orador. No entanto, não deixa de ser curioso, quando tal sucede e o cenário é outro. Quando nos encontramos sozinhos, tranquilos, de regresso a casa, passando pela praia num dia de chuva. É que mesmo quando fala só para nós, mantém a mesma persistência e eloquência.
Mas o raio do coração quer falar. Diz que tem muito a dizer e que eu não o deixo. E a verdade é uma, se eu lhe permitisse escrever, oh se eu lhe permitisse escrever, o que ele não escrevia. O que ele não fazia. O que ele não dizia.
Se deixássemos que os corações falassem entre si, seria muito mais simples. Podemos até imaginá-los, frente a frente, músculo , veias descarnadas e sangue palpitante - são feitos do mesmo material, falam a mesma língua - seria bem mais fácil. Nós é que acabamos por complicar tudo.
Bastava então eliminarmos a variável indivíduo. Sim, tudo aquilo que somos, com direito a fosso e masmorras. Tudo o que nos prende, ou parece prender. Porque o coração é livre. Solta-se sem dar aviso prévio e voa. E voar é bom, muito bom. O pior é quando, depois de nos sentirmos nas nuvens, nos vemos obrigados a laçá-lo e a puxá-lo de volta. É quando dói. Depois de inflado por um sentimento, não é tarefa fácil voltar a encaixá-lo no mesmo lugarzinho de antes. Não cabe.
E o que fazer? Deixá-lo fora, preso por uma corda, não podemos; deixá-lo à solta, não convém; e metê-lo à força cá dentro mostra ser doloroso demais. E o que é que acabamos por fazer? Primeiro, cortamos-lhe as asas. Depois, amordaçamo-lo. E isso não se faz. Não se faz mesmo. Por isso ele reclama. E com toda a razão.