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Blue 258

Blue 258

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27
Set10

«Lembro-me agora que tenho de marcar um

encontro contigo, num sítio em que ambos

nos possamos falar, de facto, sem que nenhuma

das ocorrências da vida venha

interferir no que temos para nos dizer. Muitas

vezes me lembrei de que esse sítio podia

ser, até, um lugar sem nada de especial,

como um canto de café, em frente de um espelho

que poderia servir de pretexto

para reflectir a alma, a impressão da tarde,

o último estertor do dia antes de nos despedirmos,

quando é preciso encontrar uma fórmula que

disfarce o que, afinal, não conseguimos dizer. É

que o amor nem sempre é uma palavra de uso,

aquela que permite a passagem à comunicação;

mais exacta de dois seres, a não ser que nos fale,

de súbito, o sentido da despedida, e que cada um de nós

leve, consigo, o outro, deixando atrás de si o próprio

ser, como se uma troca de almas fosse possível

neste mundo. Então, é natural que voltes atrás e

me peças: «Vem comigo!», e devo dizer-te que muitas

vezes pensei em fazer isso mesmo, mas era tarde,

isto é, a porta tinha-se fechado até outro

dia, que é aquele que acaba por nunca chegar, e então

as palavras caem no vazio, como se nunca tivessem

sido pensadas. No entanto, ao escrever-te para marcar

um encontro contigo, sei que é irremediável o que temos

para dizer um ao outro: a confissão mais exacta, que

é também a mais absurda, de um sentimento; e, por

trás disso, a certeza de que o mundo há-de ser outro no dia

seguinte, como se o amor, de facto, pudesse mudar as cores

do céu, do mar, da terra, e do próprio dia em que nos vamos

encontrar, que há-de ser um dia azul, de verão, em que

o vento poderá soprar do norte, como se fosse daí

que viessem, nesta altura, as coisas mais precisas,

que são as nossas: o verde das folhas e o amarelo

das pétalas, o vermelho do sol e o branco dos muros.»

 

Nuno Júdice, in “Poesia Reunida”

 


 

Roubado do Sussurros e Respiros

 


 

Receita de cores

08
Ago10

Blue. Azul. Se lhe juntarmos duas colheres de vermelho da china, imperial nas cores de um coração que bate descompassado e as artérias vibram de fulgor, passamos a ter um roxo. Sóbrio, sereno e revoltado. Bruised.

Imperioso é o sangue que jorra nas veias, e a cada batida do coração, bombeamos mais um pouco de laca de gerânio e vermelho de câdmio. Transmutamos a cor. Cedemos. Guardamos.

Vermelho fulgurante. Somos a cor do sangue que nos enrubesce a alma. Que nos alimenta. Que nos mata a sede.

Juntamos uma pitada da calma e serenidade do branco, e vamos envolvendo suavemente, com um ritmo que é só nosso, tão próprio, tão... até chegarmos ao rosa agridoce.  Um querer simultaneamente ácido e doce. Doce, por querer; ácido, na loucura de conter o vermelho.

Rosa. Transcendemos à  mais pura doçura que há em nós, mulheres que amam com toda a impetuosidade do seu sangue. De corpo e alma.

Modelamos as cores, envolvendo-as em sentimentos, marcando o ritmo com o bater do coração. E encontramo-nos de novo no roxo. Bruised. Bruised hearts. That's all we are. When we're not bloody red inside.

 

A vida apresenta-nos as cores e os sabores, entrega-nos os ingredientes de uma receita que não se encontra nos livros, e nós complementamos com o nosso toque pessoal, adicionando pitadas disto e daquilo. Arriscamos. Procuramos a cor do sabor que nos parece perfeito.

 

Sentimento pintado

20
Abr10

Ocorre-me esta denominação - sentimento pintado - penso-a, sinto-a. Se o que foi escrito pode ter uma duplicidade de sentido, pode, e ouso até dizer que a tem. Ao ler, senti as cores das palavras, reconheci um sentimento que partilho,  que é meu também, que faz parte de mim. Sempre fez.

Separa-nos a distância, centenas de quilómetros, de Viana do Castelo a Albufeira. Une-nos o amor ao mar. Um amor, uma forma de estar,  e até uma forma de ser e de pensar, junto ao mar. Não o escrevi eu, e no entanto, consigo rever-me em cada palavra. Em cada uma.

 

 

«Fecho os sorrisos num livro, pequenos contos, histórias de fadas, de falas, de farsas, acordadas entre suspiros de primavera.

Sento-me, sinto-me e olho o horizonte a espera de uma qualquer revelação, uma qualquer verdade empírica.

A praia está vazia, pintada de amarelos torrados, verdes secos, céu e mar em cinzas desconcertantes. Espumas.

Um vazio. Esse vazio! O mesmo vazio que é irmão daqueles silencio ensurdecedores que nos deixam à beira da loucura.

São estas bermas. Estes barulhos que me fizeram uma falta imensa. A falta e a saudade que só quem nasce perto do mar jamais irá perceber.

No melhor dia do ano. No pior dia do ano.

Não fico muito tempo. Fico o tempo suficiente para me certificar que a ordem natural das coisas se manteve. Sempre se mantém.

Até ao dia.»

 

Vera Inácio, in Gata Preta