Porque é meu. Porque faz parte de mim. Porque me acompanha, registando aquilo que eu lhe dito que pode registar. Porque exala perfume, descobre a paixão da pele, guarda o cheiro de uma memória. Porque marca o passar dos dias, desenha as estações do ano ao de leve e escreve o que me vai na alma.
«A gramática, definindo o uso, faz divisões legítimas e falsas. Divide, por exemplo, os verbos em transitivos e intransitivos; porém, homem de saber dizer tem muitas vezes que converter um verbo transitivo em intransitivo para fotografar o que sente, e não para, como o comum dos animais homens, o ver às escuras. Se quiser dizer que existo, direi "Sou". Se quiser dizer que existo como alma separada, direi "Sou eu". Mas se quiser dizer que existo como entidade que a si mesma se dirige e forma, que exerce junto de si mesma a função divina de se criar, como hei-de empregar o verbo "ser" senão convertendo-o subitamente em transitivo? E então, triunfalmente, antigramaticalmente supremo, direi "Sou-me".»
Fernando Pessoa