O temporal ruge lá fora. Tal é o seu rugido, que o mar, escarpado, parece atacar inimigos invisíveis que se passeiam ao longo da costa. As folhas ainda verdes - poderosa resistência - são rasgadas pelo vento, sem piedade. As árvores balançam sob a batuta do vento, soltam raízes, apoiando-as desnudas na terra molhada. Lá fora, toma lugar a batalha infernal dos elementos. Cá dentro, a madeira seca crepita na lareira. O teu corpo desnudo abraça o meu. Os corpos beijam-se continuamente no espaço exíguo do sofá. E nele passamos a noite. Nele começou o temporal que agora se arrasta lá fora.
O dia parece soçobrar pelo peso da noite que impiedosamente se abate sobre ele. O céu parece querer libertar as águas que aí aprisiona. Querer. Até o céu tem querer. O mar que retumba sem parar, parece agitado, não pela força do vento estranho que lhe escarpa as ondas, mas pela tempestade que se quer formar. Querer. Há um querer que se foi alimentando durante o dia, sorvendo tudo à sua volta, acrescentando, engolindo tudo em que toca, encrespando-se na crista de um tornado, impulsionado pela demora de ter. De te ter.
just gonna stand there and watch me burn that’s alright because i like the way it hurts
A sala quente, crepitante, vibra quase silenciosamente nos aromas de laranja e canela, nos tons alaranjados que a compõem. Um vulcão. És lava que me corre nas veias. Que me incendeia. E eu sou tempestade. Os meus desejos parecem comandar os ventos, as marés, a cadência da chuva e das estrelas. Abres a porta, e os ventos inflamam o incêndio que me queima a pele. E ao entrares, trazes contigo o tornado que te espera. Voas para os meus braços, e é o meu fogo que te queima a pele. Sou eu que te consumo, que te quero consumir, que me consumo a mim própria contigo. Em te querer. Querer. Este querer que balança no ar, contagiando-nos, aliciando-nos, iludindo os sentidos.
Os corpos envolvem-se numa dança que conhecemos tão bem. Sabem de cor os passos, mas sinto-os improvisar a cada toque, a cada arrepio. O sabor da pele dita o compasso da entrega. De te receber. De te ter.
E os meus braços perdem-se nos teus. A minha boca palminha o teu corpo, tacteando cada centímetro, na escuridão intrincada. O meu cheiro dispersa-se no teu. O teu sabor grava a passagem por cada recanto do meu corpo. Os teus dentes marcam-me os ombros. As minhas unhas marcam-te as costas. Cedemos. Soçobramos sob a fúria que se abate sobre nós. Somos tempestade. Somos.
Encostamos os corpos suados à vidraça gotejante da sala. O mar, lá fora, reage à provocação da cadência dos nossos corpos desnudos. Vergamos os corpos ao desejo, amamos, sugamos a vida, consumimos a energia sem fim. Pára. Sentes? Juntos originamos um terramoto violento, cujo epicentro se forma aqui mesmo. Aqui. E agora.
No estúdio, as tintas cedem sob a loucura do calor. Loucura? Diria tortura. Sim, tortura. Também eu cedo como elas a esta tortura, a este calor. Nem o mar possante acalma o fogo que se faz sentir. A brisa passeia-se sómente pela casa, aquela, na praia, sem vizinhos por perto.
Ambos ardemos neste fogo que nos consome. Este fogo que deflagrou quando o teu corpo tocou no meu. Este fogo que pede mais... e que nos consumirá até nada restar de nós.
Quentes, sufocados no calor do nosso beijo, presos pela doçura do nosso abraço. Queremos ver-nos livres das roupas que ainda nos prendem... que ainda nos detêm. Queremos espaço, queremos liberdade, queremos ter-nos... sim... eu quero ter-te... tanto como tu mostras querer-me a mim.
Perco-me na tua pele morena... delicio-me com o teu perfume... com o cheiro da tua pele... com o teu sabor... Colo os meus lábios aos teus... Derreto-me na doçura da tua boca... sinto os teus lábios doces que agora percorrem demoradamente o meu pescoço, os meus ombros, o meu peito... iniciando depois a viagem de regresso... partindo do peito... deslizando pelos ombros... até ao pescoço... e voltando... a colar-se aos meus.... em mais um beijo avassalador.
A nossa pele suada, o teu perfume que se envolve com o meu... o teu sabor... o meu sabor... onosso sabor. A tempestade agora confinada ao ensejo dos nossos corpos em se possuírem.
A acalmia paira lá fora. Fortes gotas de condensação deslizam através do vidro. São marcadores da tórrida paixão a que nos entregamos. Aquela que nos consome... aos poucos... e cada vez mais.
Apenas o ar frio da noite... poderá acalmar o calor dos nossos corpos... tonificar os nossos sentidos... e deixar-nos então mergulhar conscientemente na doce loucura que nos envolve.
Façamos do areal o nosso leito. Façamos inveja às estrelas... incapazes de arder como nós. Saciemos a tua sede... e a minha fome... de ti... da mesma forma. A única possível. Sob estas estrelas que brilham...
... pelo desejo. Pelo fogo, que me verga à sua vontade. Por ti. Por ti...
Por ti, que hoje, te revelas meu dono e senhor. Por ti, que hoje, me tens nas tuas mãos. Por ti, que aqui, me tens ao teu dispor. Por ti, que hoje, provas poder fazer de mim o que queres. O que queres. O que quiseres...
Pelo fogo que hoje te consome.
E eu... desejo consumir-me no teu fogo. Nesse teu fogo que a mim alastra. Temerariamente. Esse teu fogo que me incendeia... e ardo, como ardo. Esse fogo que já não é teu, apenas teu. É meu, também meu. E daqui a pouco... um, e apenas um, que nos consumirá aos dois.
A cada vez que esse teu fogo doce e envolvente, me penetra, sinto o seu poder alastrar, atingir proporções desmedidas. A cada vez... e cada vez mais.
A cada vez que te sinto, inflama o fogo que arde em mim. A cada vez que me possuis, inflama o fogo que arde em ti. À medida que alastra, revela a sua força escondida, o seu poder oculto. Tal como tu.
E eu, apenas... ardo, como ardo! Como me fazes arder... A cada vez que me possuis - colocas mais de ti, dás mais de ti - a cada vez. Quisesse eu resistir... não o conseguiria. Já não sou dona de mim. Já não tenho poder, vontade... apenas ardo. Sinto a alma escapar-se do corpo, soltar-se de mim. Levita. Acima do meu corpo em chamas. Levita. Etérea. Imortal.
Pelo fogo que hoje me consome.
Sei bem que atinges o limiar da loucura, quando sou assim, tua, sem limites - e mais ainda raias a loucura, ao sentir que hoje, é um desses dias. Sinto que saboreias na boca o poder que possuis sobre mim, quando me entrego desta forma. Quando me possuis desta forma. Procuras não pensar nisso, afastar esses pensamentos da tua mente... mas não consegues.
Apercebo nos teus olhos a tresloucada luta pelo poder - entre o controlares esta possessão nas tuas mãos, em a saboreares até ao máximo, em a fazeres perdurar... e o lançares-te no fogo que já nos consome.
Não sorris. Procuras não te distrair. Procuras resistir ao avanço das chamas. Procuras atrasar o momento em que te entregas, em que te dás por perdido, em que finalmente te lanças no fogo.
Até chegar o momento em que cedes. Sem restrições.
E eu ardo, como ardo! Como as moléculas volatilizadas do malte que bailam à nossa volta, também eu sinto as moléculas do meu corpo que entram em combustão, e se soltam, por breves momentos, levitando limitrofemente. Separam-se... e voltam a encaixar-se. Repetidamente. Incessantemente.
Concentrado, no entanto balançando entre duas vontades, balançando como as chamas deste fogo que nos consome... Balançando entre o desejo de encerrar este poder nas tuas mãos, de o dominar, e entregares-te, cederes ao fogo... fogo esse que já te consome. Fogo esse, que já nos consome... a ambos.
E ambos subjugados pelo mesmo fogo... somos fogo, apenas fogo.
Envoltos na bruma, despertamos. Aos poucos, recuperamos os sentidos...
Os nossos corpos estendidos... a cama feita no chão, mesmo em frente à lareira.
O fogo, praticamente extinto. O ar penetrante.
Levanto-me. Envolta no lençol, abro a porta para o terraço. O nevoeiro parece acariciar-me a pele, sorvendo a doçura de cada poro. A bruma envolve a casa, aquela, na praia, sem vizinhos por perto. E hoje, mesmo que os tivéssemos, não existiriam, e mesmo que existissem, não conseguiriam perfurar a muralha que nos envolve - casa, o areal defronte, uma ínfima parte do mar... e nós. Só isso existe. Só isso é nosso. Só isso importa.
Caminho pela areia, em direcção à água. Está frio, mas pareço não me importar. Deslumbro-me com a mística que me rodeia. O meu olhar perde-se por entre o nevoeiro... por entre o que esconde... e o que deixa vislumbrar.
Caminhas pela areia, descalço. Em direcção a mim, sempre em direcção a mim. Envolves-me com o teu abraço quente, e distrais-me... de onde me tinha perdido. Encaminhas-me para dentro.
Na lareira, o fogo parece ganhar vida novamente - intrépido, consome a madeira, parecendo não saber que ao consumi-la, se consome a si próprio também. Assim é o fogo. Louco na ânsia de consumir, e quanto mais louco o desejo, mais depressa se consome.
Volto para a cama improvisada desta noite. Sento-me - virada para o fogo, que parece começar a aquecer. Sobre a mesinha, dois Irish Coffees. O aroma forte, quente e doce, envolvido numa neblina misteriosa, alcança os meus sentidos... e lentamente, começa a penetrar o meu corpo... e a apoderar-se dos meus sentidos. Sinto o vidro quente nas mãos... aproximo o copo da boca... e sorvo o aroma da canela, exótica, misteriosa; deixo-me adoçar pela nata, cremosa e espessa; sinto-me revigorar pelo sabor do café, negro e forte... e finalmente, o malte... que brinca com todos os sabores, que os mistura, que os eleva... e decompõe... tal como o fogo.
Sinto-me entorpecer... sinto-me ceder aos sentidos, que parecem subjugar-me... sinto o teu beijo frio na minha pele. Abro os olhos. Pareço despertar.
Sinto o teu corpo que me envolve. Vejo o mistério da canela no castanho dos teus olhos. Provo a doçura dos teus beijos nas minhas costas. Sinto o estímulo do café no arrepio que me percorre as veias, como as tuas mãos percorrem o meu corpo. Sinto o vigor do malte, e brincas, como brincas... queres pôr-me em combustão lenta... como queres... e pões. Como desejo consumir-me no teu fogo... e que tu... te consumas no meu.
Sirvo o licor. Aprecio as marcas que deixa no vidro. A cor. A doçura. A luz que o trespassa.
Encaminho-me para a lareira. Para ti. Deslumbro-me com o fogo que reflecte no teu rosto, nos teus olhos. Penso em beijar-te os lábios quentes. Penso em beijar-te no pescoço. Em deliciar-me com a tua pele. Perdida nestes pensamentos, de pé e de copo ainda na mão, reparo que olhas para mim. Ris com esse sorriso delicioso. Adivinhas os meus pensamentos. Ajoelho-me, junto de ti, no chão. Coloco um pouco de licor na boca. Pouso o copo e... beijo-te. Pergunto-me porque não paras de sorrir tão travessamente.
Dizes-me que sou insaciável. E ris-te. Respondo-te que sim. E de ti.
Beijo-te o pescoço. Desço lentamente pelo teu peito. Saboreio a tua pele com a língua. Sinto o quente, o calor da lareira. Sinto o teu sabor. Como adoro o teu sabor. Beijo-te o corpo. Vou desenhando serpentinas com a língua na tua pele. Vou descendo. Descendo. Sinto-te rendido. Rendes-te sempre que o faço. De todas as vezes.
Já sabes o que quero. Tenho-o estampado na cara. Avanço e encaixo-me em ti. Beijo-te ardentemente. E tu, mostras que me queres provocar. Entras no jogo. Susténs os meus avanços. Seguras-me os braços atrás das costas, e beijas-me o pescoço. Sabes como gosto... e como isso me põe louca. Provocas-me um arrepio. Era o que querias. Divertes-te com os efeitos que provoca. Não tiras os olhos de mim. Nem tentas. Adoras aquela pele fina e sensível que se enruga. Não resistes nunca a provocar-me ainda mais... com a língua... sinto-a húmida e quente - a tua língua - como adoro a tua língua. Não consigo explicar que sentimento é este que me faz crer que é perfeita... perfeita.
Com os lábios, provocas-me um pouco mais. Finalmente, sinto a tua boca. Quente, tão quente. Doce, tão doce. Nada mais existe, não há nada lá fora. Nada. Apenas nós existimos neste momento. Nós, e o calor da lareira.
E eu aqui, digo-te que te quero. Quero-te, quero-te. Sabes que não aguento mais. E, só agora, depois de completamente rendida nos teus braços, e a chamar por ti, é que tu finalmente te rendes. A mim. Completamente. Totalmente. Consumimo-nos agora num fogo que se inflama cada vez mais.