Pássaros, pessoas e agradecimentos
estive uns tempos com a asa partida, sem poder voar. o processo de recuperação foi lento e teve os seus altos e baixos, como tudo na vida, aliás. vi passar a Primavera, o Verão, o Outono e o Inverno, até aparecer de novo a Primavera. sucedeu-lhe o Verão, depois o Outono e novamente o Inverno. e eu deixava-me estar. pequenas micro-fracturas proporcionaram-se ao longo do tempo, a cada novo embate, mas entretanto, a asa sarou.
a alma... a alma é que o mais complicado de cuidar. e a de um pássaro ainda pior. é suposto que um pássaro voe, é suposto que o faça de forma mais ou menos desajeitada, mas é suposto que voe. um pássaro pode quebrar uma asa, mas não pode deixar de voar. não pode. se o faz, deixa de ser pássaro. enquanto a asa se cura, tem de continuar a voar. caso contrário, morre. e a verdade é essa: mesmo de asas partidas, devemos continuar a voar.
o meu erro foi esse. mesmo de asa partida, fiz o que não devia ter feito: deixei de voar. depois da asa curada, pensava que não voltaria a voar. perdi as minhas capacidades, dizia eu. já não consigo voar. e enquanto que me deixava assim a pensar, morria. o pássaro morria. e pássaro que é pássaro tem de voar. pássaro que deixa de voar, deixa de ser pássaro.
foi preciso aparecer um pássaro garboso, um amigo daqueles que se quer guardar para toda a vida, que se quer a voar a nosso lado, para me olhar do fundo daqueles olhos brilhantes e me dizer: o que estás a fazer aqui perdida? pergunta para a qual eu não tinha resposta. perguntas. respostas. palavras. como tudo se pode resumir a tão pouco. e a tanto. tanto. agora sinto-me de novo com forças para voar, e vejam, vejam como me lanço agora num voo escarpado, como me desafio confiante não do local onde vou aterrar mas do voo que entretanto encetei. confiante do meu voo. de mim.
custou a levantar do chão. custou. custou a levantar voo. ainda agora tenho momentos em que olho lá para baixo e penso: e se eu pousasse por um bocado? um bocadinho só, digo eu. mas não. há que voar. tenho de voar. pássaro que é pássaro tem de voar. e eu sou pássaro.
acompanham-me nos voos dois pássaros, mais fortes, que voam decididos - parecem ter voado sempre assim - como os admiro. tanto. confiantes. brincalhões. mesmo sem lhes pedir, deram e dão a força e a energia que preciso para voar. impelem-me a voar mais alto, a testar-me a mim própria, a conhecer-me. a ser eu. de perto acompanham os meus progressos, as piruetas que desenho no ar. os saltos que me comprometo a dar. de vez em quando, voam comigo, testando não a recuperação da minha asa, mas a da alma. a da alma. e eles sabem. eles vêem(-me).
tenho ainda outro pássaro pequenito, mas grande, tão grande, tão... faz voos curtos e suaves, colorindo o meu dia. outro, um pássaro doce e ferido como eu, partilha os meus refúgios no rio. abrigamo-nos numa pedra, vendo as águas correrem para o mar. também nós querendo correr... para o nosso mar.
um dos pássaros que me acompanha há mais tempo, segue-me carinhosamente do seu ninho de amor, sem me perder de vista, apoiando-me, fortalecendo-me nas minhas escolhas. outro, brincalhão, entretém-se no seu ramo preferido, saltando, chamando-nos sempre com a sua boa disposição.
outros pequenos pássaros enchem o caminho de sons, cores e sentimentos. dou por mim, a assistir o voo de outros, quando o meu ainda se define com a rota que procuro traçar. correntes ascendentes, descendentes, dias de sol, dias de chuva. e nós voamos. e eu voo.
but you can skyrocket away from me
and never come back if you find another galaxy
far from here with more room to fly
just leave me your stardust to remember you by
Sei que a melhor forma de reconhecimento é voar. Voar convosco. Acompanhar-vos. Ver-vos voar. Deixar-vos ver-me voar. Voar. E eu voo. Hoje voo. Sigo o meu caminho. Vou desenhando a rota que pretendo cumprir. Tenho-vos a todos nela, e isso faz-me feliz. E por isso vos agradeço.
Atenção: qualquer semelhança com a realidade NÃO é mera coincidência.
P.S. Não foi propositado o uso de minúsculas, tão ao estilo de valter hugo mãe - escrevi a dada altura um post, esse sim, propositadamente escrito desta forma. Desta vez, comecei por apontar as primeiras frases do que me ocorria escrever, desvalorizando as minúsculas: depois corrijo, pensei eu. Entretanto, o texto foi-se alongando e a minha vontade de o editar como que se desvaneceu. E agora fica assim, para que possa ser lido sem travões, em pleno voo.