Sentiu a bala atravessar-lhe a carne, o sangue quente a jorrar-lhe do orifício minúsculo. Cedeu ao doce entorpecimento que se apoderava do corpo. Da alma. Não sabe em que momento da sua vida sofreu o tiro, nem consegue perceber como pôde a bala atravessar a pesada e dura armadura que envergava há anos.
Coloca a mão direita sobre o peito. Nem procura estancar o rio de sangue que lhe brota do coração. Deixa-o fluir por entre os dedos, e os olhos hipnotizados perdem-se entre a pele e o vermelho vivo. Parece obter um prazer sádico. Não sabe se chore, se grite, se sorria. Ao seu rosto aflora este misto de emoções, e ficamos sem perceber se é dor que sente. Não será dor com certeza. O gelo vermelho que lhe revestia o coração, corre agora fluido e livre, dentro e fora do seu corpo. Sente-se feliz. Sente-se vivo.
Com o escalar do entorpecimento que lhe invade o corpo, acorrem-lhe ao pensamento momentos vividos, e pergunta-se qual deles terá sido o premir do gatilho. As palavras doces que o entonteceram de ternura. O mel que os envolveu, aos dois, sinuosamente, prendendo-os numa teia mortal. O desejo que inflamou o coração - o mel que ardia nas tochas e lhes iluminou o caminho. O primeiro encontro - o nervosismo inicial, a cumplicidade subliminar, a ânsia de se encontrarem - em si mesmos. Terá sido a forma como ela encetou três passos e se entregou no seu abraço? Ou a forma como ele a enlevou, colocando os braços em volta dela, encostando o rosto ao seu cabelo, sentindo-lhe o perfume, a pele, o coração a bater descompassado no peito encostado ao seu?
O relógio contou segundos, ou talvez minutos, em que permaneceram abraçados num hiato de tempo em que tudo à sua volta desapareceu. Sem tempo, sem espaço. Acredito hoje que os planetas perderam o movimento de translação e até a Terra perdeu a sua rotação. Corpos colados, e um eixo invisível entre os dois. A Humanidade evaporou como o gelo do coração, e nada mais parecia importar. Só os dois, e apenas os dois. Naquele momento que deixou de existir, deixou de ter tempo, vontade. Mas que até hoje perdura, e se sente na ponta dos dedos.
Poderá ter sido este o momento em que disparou. Ou então quando se beijaram. Se bem que ela, com a cabeça pousada no peito dele, já o beijava. Já o amava.
Aos poucos, erguia o olhar na trajectória do dele. Deixava-se inebriar com o perfume da pele dele, e talvez por isso, a mão tremia. E ao disparar, falhou. Mas afinal, qual dos dois disparou? Terá sido ela, terá sido ele? Como? Se estavam abraçados? Em que momento poderiam ter manuseado a arma negra que lhes trespassou a alma? Não podiam. Não disparam. O tiro surgiu implacável no ar e atingiu-os aos dois. A bala atravessou primeiro o corpo dele, bem no coração, e a ela, mesmo acima do seu. O metal perfurou impiedoso a carne, quebrou as amarras do músculo, verteu o sangue que lhes circulava nas veias. E o sangue dele, misturou-se no dela. E até hoje, o sangue dela corre com ele lá dentro. Quem disparou?
Blue258, para Fábrica de Letras